Por EloInsights
- Fluidez, acessibilidade, segurança e criptomoedas aparecem como algumas das principais tendências para o futuro da nossa relação com o dinheiro.
- Fintechs no mundo todo exploram novas formas de troca, armazenamento e investimento do dinheiro.
- Instituições financeiras precisam estar prontas para um mundo em que foco no cliente, transparência, acessibilidade e segurança nunca foram tão importantes.
Desde o surgimento das primeiras formas de troca de valores, o avanço da tecnologia teve um papel vital na transformação e na evolução do jeito que enxergamos e usamos o dinheiro, deixando para trás, sistematicamente, modelos ultrapassados: das pedras Rai utilizadas pelos povos das ilhas Yap no Oceano Pacífico, passando por conchas ou as primeiras moedas metálicas na antiguidade.
Hoje, em plena era digital da informação, não é de se esperar que seja diferente. Nossa relação cotidiana com o dinheiro mudou radicalmente nas últimas décadas com a introdução de inovações como o smartphone, aplicativos, pagamento sem contato, ou cashless, novos protocolos de transferência bancária e as criptomoedas.
Essas últimas despretensiosamente iniciaram no final de 2008 uma das mais profundas mudanças na história financeira recente, e continuam desafiando o paradigma vigente de forma estrutural. Com o bitcoin, o dinheiro não é mais metálico nem de papel. Ele é digital.
E se todas essas mudanças ainda deixam muita gente confusa (“como assim é possível minerar um bitcoin por meio da execução de um complexo algoritmo criptográfico?”), não espere que elas parem por aqui. Pelo contrário, a tendência é que continuem acelerando.
Em pouco mais de dez anos, as criptos, que prometem descentralizar as finanças e empoderar indivíduos, passaram de uma tecnologia de nicho, vista como algo limitado a aficionados em criptografia e programação, para um cenário muito diferente.
Hoje, corretoras que vendem todo tipo de tokens, alguns nascidos como memes, como o caso da Dogecoin, fazem propaganda na TV aberta e atingem uma massa da população curiosa com a possibilidade de multiplicar seus investimentos.
Ao mesmo tempo, instituições tradicionais de Wall Street e do mercado financeiro, consideradas conservadoras, aderem e investem milhões neste mercado, e até nações estado como El Salvador adotam o bitcoin como moeda legal. Na Rússia, 11ª maior economia do mundo, o Banco Central publicou um documento definindo as bases legais para a futura regulamentação de criptomoedas.
Enquanto isso, no varejo, as empresas também precisam se ajustar a esses novos meios digitais. A Apple revelou uma novidade que vai adicionar aos iPhones a capacidade de funcionarem também como terminais de pagamento por aproximação para vendedores, uma evolução de um segmento que já vinha sofrendo disrupção há anos com a introdução de terminais mais portáteis e baratos, alguns conectados aos celulares.
No Brasil, o Pix abriu outro capítulo nessa história de “fluidificar” as transferências bancárias.
No centro de toda essa revolução, o que está em jogo é a nossa relação pessoal e cotidiana com o dinheiro. A forma como o armazenamos, trocamos, investimos, usamos na compra de bens e na contratação de serviços. Essas transformações afetam profundamente a sociedade e as organizações, que terão que se adaptar para navegar nesse novo cenário.
Neste artigo especial de EloInsights, levantamos algumas das principais tendências que moldam o presente e o futuro dessa relação, além de suas consequências e impactos.
Dinheiro (ainda) mais fluido
Há pouco mais de um ano, o Banco Central brasileiro introduziu uma novidade no sistema financeiro que mudaria a forma como fazemos transferências de uma conta para outra: o Pix, que oferece aos usuários de contas bancárias uma alternativa ao TED e ao DOC, com vantagens.
Ao contrário de seus concorrentes, a transferência é instantânea – antes, seria necessário esperar horas e às vezes até dias. Além disso, o Pix é gratuito na maior parte dos casos e pode ser realizado fora de horários comerciais, inclusive nos finais de semana.
Esse é um exemplo de uma importante tendência: a “fluidificação” do dinheiro, ou, em outras palavras, a diminuição na fricção para a circulação de valores. Se antes você precisava pagar taxas, escolher um horário delimitado, e ter em mãos uma série de informações, como códigos bancários, número de conta, agência e CPF, o Pix mudou tudo isso. Para escolher um destinatário, basta apontar uma única chave.
Além disso, o novo sistema funciona como uma verdadeira plataforma que permite uma série de inovações que serão implementadas pelo Banco Central gradualmente; por exemplo, a possibilidade de usá-lo para sacar dinheiro em estabelecimentos comerciais, pagamento parcelado e até Pix crédito, uma iniciativa liderada pelo Itaú e estudada pelo BC. Transferências internacionais e transações offline também estão na pauta.
O resultado foi uma adoção em massa. Até outubro de 2021, segundo o BC, foram realizadas cerca de 7 bilhões de transações Pix. O volume movimentado foi de R$ 4 trilhões.
O Pix apresentou 45,6 milhões de pessoas aos meios de pagamento digitais e, na esteira dessa revolução, novas opções devem diversificar ainda mais esse universo e acirrar a competitividade pela oferta de produtos e serviços.
A implementação do Open Banking, já em andamento pelo Banco Central, vai integrar sistemas e estabelecer um conjunto de regras, certificações e tecnologias para facilitar o compartilhamento seguro de dados dos clientes entre instituições financeiras.
A intenção é dar mais propriedade e transparência ao cliente para que ele tenha maior controle sobre suas próprias informações. O consentimento estará no centro, pois é o consumidor quem vai decidir se dará ou não acesso ao seu histórico financeiro, por exemplo. Isso também vai representar uma mudança na lógica e no diferencial competitivo para todo o sistema.
Com essa nova plataforma, a posse de dados deixa de ser uma vantagem e outras variáveis se evidenciam, relacionadas à implantação de tecnologia, ao bom uso e análise das informações. Sai na frente quem inovar de forma contínua e disciplinada.
Países como Reino Unido e Austrália já pavimentam esse caminho de maior circulação das informações e mostram que existirá um período de adaptação – tanto para as fintechs, mais familiarizadas com a adoção de novas tecnologias, quanto para os bancos tradicionais e para os próprios usuários.
No contexto da ampliação dos canais de transferência de valores, aparecem ainda entre as tendências os pagamentos realizados a partir de aplicativos de mensagem instantânea. Usuários do WhatsApp, por exemplo, já podem efetuar pagamentos entre si diretamente na plataforma e de graça. Presente em cerca de 120 milhões de smartphones no país, há garantia de um alto impacto no mercado.
E, se os terminais de pagamento já foram considerados disruptivos ao se acoplar aos smartphones não muito tempo atrás, esses hardwares tendem a ser dispensáveis.
A Apple já comunicou que vai viabilizar pagamentos sem terminais pelo Tap to Pay, sistema que vai se conectar ao Apple Pay, cartões de crédito e carteiras digitais sem a necessidade de um hardware específico. A transmissão do meio de pagamento será feita pelo próprio iPhone, baseada na comunicação de campo de proximidade, mais conhecida como NFC.
Essa mesma tecnologia viabiliza os pagamentos em formato cashless, expressão que se refere a transações realizadas sem dinheiro nem cartões, apenas com aplicativos, como carteiras digitais, instaladas em smartphones e outros dispositivos equipados com esse sistema de comunicação sem contato, como pulseiras e relógios inteligentes.
Novos produtos, formas de investir e usar o seu dinheiro
As fintechs vêm revolucionando a forma como lidamos com o dinheiro. No início, destacaram-se as contas digitais simplificadas com oferta de cartões de crédito gratuitos e sem taxas de manutenção anuais. Mas, aos poucos esse cardápio de produtos e serviços se expande, permitindo que os usuários utilizem seu dinheiro de forma mais diversificada, customizada de acordo com as necessidades de cada perfil, e mais inteligente.
Não à toa as startups brasileiras que mais receberam recursos ao longo de 2021 são da área financeira. A Distrito indica que, de um total de US$ 9,4 bilhões movimentados pelo setor, as fintechs captaram US$ 3,7 bilhões, com 176 rodadas de investimentos. Também lideraram em fusões e aquisições, com 44 operações do tipo.
A adesão aos bancos digitais é motivada por fatores como economia de tempo e trâmites mais ágeis com a diminuição da burocracia. Para 86% dos clientes, o acesso a produtos financeiros foi ampliado graças às fintechs; 81% consideram o processo de aprovação de crédito mais simples e acessível; já 84% dos usuários apontam como vantagem a cobrança de valores baixos, em comparação a bancos tradicionais. Tais conclusões foram divulgadas pela Zetta, associação que reúne as principais fintechs do país, em pesquisa com 1.519 entrevistados feita pelo Instituto Locomotiva, em 2021.
Poucos anos atrás, o acesso a plataformas de investimentos era mais limitado. Hoje, grandes marcas como XP Investimentos e NuInvest, do Nubank, popularizam novas maneiras de o consumidor investir o seu dinheiro, não importa o perfil, do mais conservador ao mais agressivo. E tudo isso com o apoio de plataformas de tecnologia que diminuem a fricção de todo o processo.
Um exemplo recente foi abertura de capital do Nubank. Usuários do aplicativo da empresa receberam, anteriormente ao IPO, um aviso de que poderiam participar da oferta inicial de ações. Para isso bastavam alguns poucos cliques. A estratégia para os próximos anos está clara: não atuar apenas como um fornecedor de contas digitais, e sim disponibilizar aos seus clientes uma ampla gama de produtos, inclusive fundos de investimento atrelados à cotação de criptomoedas.
Sistemas de cashback são cada vez mais comuns e aparecem nas mais diversas formas. Recentemente, a Mastercard passou a utilizar incentivos com criptos. Sistemas de recompensas e pontos que podem ser resgatados na aquisição de produtos, ou no abatimento de itens da fatura, também já são parte desse “novo normal”.
Todos esses exemplos são parte de uma tendência de surgimento de novos produtos financeiros que permitirão ao consumidor utilizar seu patrimônio de forma mais diversificada do que anteriormente era possível. Em um novo contexto em que as contas correntes já geram rendimentos, as instituições financeiras correm agora para oferecer as melhores possibilidades de uso para seus clientes.
Segurança será um elemento ainda mais crítico
Todas as tendências levantadas até aqui apontam para uma relação com o dinheiro mais fluida e múltipla. Isso nos leva a um terceiro e importante elemento: a segurança.
Com a explosão de transferências realizadas em meios digitais e via Pix, cresceu também o número de golpes que exploram a facilidade transacional desses sistemas e que, muitas vezes, são difíceis de rastrear.
A Secretaria de Segurança Pública (SSP) registrou aumento de 39,1% dos casos de sequestro-relâmpago no estado de São Paulo entre janeiro e julho de 2021, em uma relação direta com a difusão do Pix. Multiplicaram-se também casos de pessoas que acabam convencidas a fazer Pix espontaneamente, enganadas por criminosos se passando por parentes e amigos em conversas de aplicativos como o Whatsapp.
De imediato, a resposta das autoridades veio em forma de restrições ao uso do Pix durante a noite e a madrugada. Também foi criado o Mecanismo Especial de Devolução, que facilita o ressarcimento em caso de fraude ou quando há falhas operacionais entre instituições financeiras. Além disso, transações suspeitas podem ser retidas por 30 minutos durante o dia e por 1 hora no período da noite. Tudo isso a fim de coibir ações criminosas.
Já foram comunicados pelo Banco Central três vazamentos de dados vinculados a mais de 550 mil chaves Pix. Em todos os casos, foram extraídas apenas informações cadastrais, tais como nome do usuário, CPF, instituição de relacionamento e número de agência e conta.
Ainda que o BC tenha minimizado o ataque por considerar que foram preservados dados mais sensíveis e protegidos por sigilo bancário – por exemplo, senhas, informações de movimentações e saldos financeiros –, tais situações alimentam a sensação de insegurança para os usuários.
Outro ponto de atenção está na popularização de criptomoedas. Golpes envolvendo tokens digitais se proliferam pelas redes sociais, em grupos do WhatsApp, e geralmente com a promessa de ganhos extraordinários. Aumentam também os casos de ransomware, sequestros de dados de corporações por meio de criptografia forçada de arquivos, cujo pagamento é geralmente realizado por meio da transferência de valores em bitcoin.
Não existe uma solução única para o problema e os métodos de invasão ganham sofisticação na mesma velocidade em que surgem novas tecnologias. Para os especialistas, os invasores devem mirar cada vez mais na vulnerabilidade de ambientes híbridos, o que envolve dispositivos IoT (Internet das Coisas), combinados a engenharia social para manipular o comportamento das vítimas.
Somente em 2021, foi roubada a quantia de US$ 1,1 bilhão (R$ 6,23 milhões) em criptomoedas pelo mundo, em cálculo realizado pela Atlas VPN. O volume de roubos ocorridos nos três primeiros trimestres do ano passado superou o total desviado ao longo de 2020: foram 146 fraudes até setembro de 2021, contra 122 no ano anterior. Se considerarmos que o mercado de criptomoedas está aquecido e ultrapassou pela primeira vez o patamar de US$ 3 trilhões (R$ 17 trilhões), é de se esperar um número crescente de fraudadores.
O elemento anônimo desses tokens, que são enviados para carteiras “frias” cuja origem é difícil de rastrear, facilita que os criminosos fiquem impunes.
Nesse contexto, a resposta de instituições governamentais e privadas deve vir na forma de uma maior conscientização sobre os riscos à segurança nesse novo contexto digital, mas também no investimento em plataformas e soluções tecnológicas que sejam capazes de detectar ameaças e fraudes de forma preditiva, como uso de algoritmos e inteligência artificial que consigam minimizar as ameaças ao consumidor.
A Binance, uma das maiores plataformas globais de criptomoedas, anunciou a criação de um seguro por meio de um fundo avaliado em US$ 1 bilhão (R$ 5,58 bilhões, aproximadamente). Segundo um memorando interno ao qual a Bloomberg teve acesso, o CEO Changpeng Zhao afirma que essa medida é mais eficaz e redobra a proteção aos usuários da exchange. É uma aposta para evitar prejuízos e a perda de clientes.
A infiltração das criptomoedas continua
Treze anos se passaram desde a criação do bitcoin (BTC), a primeira das criptomoedas. Satoshi Nakamoto, a pessoa (ou as pessoas, segundo algumas teorias) que inventou essa tecnologia, já considerava a possibilidade da coexistência de múltiplas blockchains e moedas competindo por relevância de rede.
Esse cenário se concretizou. Existem hoje cerca de 8 mil criptomoedas, segundo o CoinMarketCap, ainda que o volume de investimento esteja concentrado em um número muito menor.
Enquanto os investidores mais ousados buscam pela próxima meme coin que vai multiplicar 100 vezes em valor, o bitcoin ganha espaço e adoção em massa. Ao ponto de nações, como El Salvador, o adotarem como moeda legal, permitindo seu uso para o pagamento até de um prosaico cafezinho.
Outros países também já abrem portas para regulamentações. A Alemanha aprovou uma lei que permite a alocação de até 20% do patrimônio de fundos de investimento em bitcoin e em ethereum, a segunda cripto mais comercializada no mundo. Pelo mundo, multiplicam-se os Exchange Traded Funds (ETFs) ligados a criptos. Quem diria que uma moeda digital inventada por uma entidade desconhecida e anônima em círculos libertários e anarquistas conquistaria o mundo?
Apesar de ter movimentado o equivalente a R$ 103,5 bilhões em 2021 somente no Brasil, o bitcoin está longe de ser uma unanimidade. Uma das principais críticas ocorre em torno da temática ESG. Análise recente do jornal The New York Times estimou que sejam consumidos por ano 91 terawatt/hora, em escala mundial, na mineração do BTC – o que supera o abastecimento anual de um país como a Finlândia, que tem 5,5 milhões de habitantes.
É com esse argumento de massivo consumo de energia e enorme pegada de carbono que nomes de peso, como Elon Musk, passaram a ser mais cautelosos ao apoiar a moeda. O CEO da Tesla voltou atrás na decisão de aceitar bitcoin na aquisição de seus veículos – prometendo rever esse posicionamento se os mineradores passarem a adotar fontes renováveis de energia. Ao mesmo tempo, a gigante automotiva mantém uma reserva de cerca de US$ 1 bilhão em bitcoin, segundo o balanço mais recente.
Outra tendência importante é a das stablecoins emitidas por bancos centrais (em inglês, CBDC – Central Bank Digital Currency). Esse tipo de moeda digital possui lastro em outros ativos mais estáveis, por exemplo, o ouro, o dólar ou o euro. No Brasil, o BC organizou um grupo de estudo já em 2020 sobre o tema.
Dentro de uma agenda de modernização, a entidade afirma que lançar uma versão digital do real expande a aplicação de novas tecnologias no país – como smart contracts (contratos inteligentes), IoT e dinheiro programável, além de apoiar novos modelos de negócio que aumentem a eficiência do varejo e de meios de pagamento. Também é mais um instrumento para a inclusão digital de uma parcela de brasileiros que ainda é mal atendida por serviços bancários.
O caso da China é emblemático. O país passou de maior polo de mineração de bitcoin do planeta à total proibição da atividade e de qualquer transação com criptoativos. Paralelamente a essa estratégia de banimento de ativos descentralizados, o governo chinês já experimenta com o yuan digital, uma moeda centralizada disponibilizada à população em caráter de teste, por meio de loterias especiais.
De modo geral, para governantes do mundo inteiro, a adoção de CBDCs é uma maneira de acompanhar o dinamismo da evolução tecnológica e manter relevância nos cenários econômicos mundiais, aumentando a eficiência nas transações entre fronteiras.
No futuro, meme coins, bitcoin e CBDCs devem coexistir de forma ainda mais integrada, uma podendo ser convertida em outra com poucos cliques. Esse grande ecossistema reunirá instituições financeiras tradicionais, bancos centrais, varejo e usuários. Carteiras digitais capazes de armazenar esses tokens serão o novo normal. É uma outra lógica, que rompe as barreiras das criptomoedas e já move estruturas.
Decentralized Finance, ou simplesmente DeFi, é o termo em inglês para Finanças Descentralizadas – que também pode ser chamada de Open Finance, ou Finanças Abertas. Esses termos ganham corpo e se referem a novos formatos dos serviços e produtos que já conhecemos – como empréstimos, transferências e sistemas de pagamentos –, mas que agora passam a orbitar um novo universo, rodando em blockchains com mais transparência e rastreabilidade.
Adotam o protocolo DeFi, que opera via registro em um banco de dados descentralizado e imutável. Ali, as operações são descritas e executadas por algoritmos e smart contracts, tornando-se autoexecutáveis.
Se parece complexo demais, na prática, significa que operações dentro de blockchains não precisam de intermediários. Ou seja, essa tendência à descentralização fatalmente altera o papel das instituições financeiras. Agora, o desafio das fintechs e dos bancos mais tradicionais será integrar esse mundo tão futurista às suas operações, ao mesmo tempo em que ampliam o acesso a serviços financeiros e a oferta de produtos.
É a expansão e a abertura de novas trilhas para os negócios, em que o foco no cliente e a construção de propósito com transparência são mais fundamentais do que nunca. Assim como a agenda ESG, que inclui cuidado com o meio ambiente, sustentabilidade, inclusão e respeito à diversidade.
A blockchain também pode representar maior transparência para o cumprimento de metas e acordos relacionados à emissão de títulos verdes, outra vertente de oportunidades para o setor financeiro.
Em 2021, a emissão total de títulos sustentáveis no mundo bateu a marca histórica de US$ 1 trilhão, um aumento de 45% na comparação com 2020. Só em green bonds, títulos verdes voltados ao meio ambiente, foram US$ 488,8 bilhões emitidos. No Brasil, as operações rotuladas com selos ESG movimentaram R$ 84,5 bilhões no ano passado.
Neste início de 2022, por exemplo, o Banco do Brasil captou US$ 500 milhões na emissão de títulos atrelados a iniciativas ESG. Foi a primeira vez que um grande banco do país emitiu um social bond, com prazo de sete anos para conceder benefícios a produtores rurais, pessoas com deficiência e financiamentos voltados a habitação para pessoas de baixa renda.
Ampliação do acesso
Apesar de hoje discutirmos tecnologias futuristas no mercado, uma outra realidade que se desenvolve paralelamente é que para uma enorme fatia da população, essas promessas ainda soam como algo muito distante.
No Brasil, cerca de 34 milhões de pessoas ainda são desbancarizadas, ou têm uma conta que usam com pouca frequência, de acordo com um levantamento do Instituto Locomotiva. Esse número representa 21% do total da população sem acesso ou com acesso limitado a instrumentos financeiros, uma parcela que anualmente movimenta cerca de R$ 347 bilhões.
Esse problema não é novo, mas as ferramentas tecnológicas cada mais avançadas e acessíveis favorecem a consolidação de fintechs e instituições financeiras nesse caminho de romper antigas barreiras. Muitas se especializam na população de baixa renda e em pessoas historicamente excluídas para oferecer produtos específicos.
O Banco Afro, por exemplo, é um banco digital focado em impactar cadeias produtivas de grandes marcas e pessoas das classes C, D e E. Recentemente se uniu a uma fabricante de tinta, levantando cerca de R$ 2 milhões para distribuir a 2 mil pintores afetados pela pandemia. Eles ganharam acesso a contas e outros serviços financeiros digitais, além de suporte e orientação em relação ao uso do benefício em dinheiro e na estruturação de pequenos e-commerce e sites para divulgação de serviços.
Com a ambição de ser o “BNDES das favelas”, o G10 Bank foi lançado na “Bolsa de Valores das Favelas” em novembro de 2021. A iniciativa foi puxada pelo G10, bloco formado pelas comunidades de maior potencial econômico do país. Incluindo Capão Redondo, Heliópolis e Paraisópolis, em São Paulo, Rocinha e Vila Cruzeiro, no Rio – por exemplo, tem potencial de consumo de R$ 7,7 bilhões, estima o Outdoor Social Inteligência.
A proposta do “IPO” foi abrir as portas a investidores com aplicações a partir de R$ 10 por meio da plataforma DIVIhub, que tem a permissão da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para regular os ativos. O banco atua principalmente financiando pequenos empreendedores dentro das comunidades.
O Moeda Semente utiliza a blockchain em seu ecossistema visando humanizar finanças e distribuir impacto. A CEO Taynaah Reis alia sua formação autodidata em tecnologia com a experiência familiar em cooperativas de agricultores, aldeias e quilombos para impactar produtores, prestadores de serviços e consumidores desbancarizados.
Criou sua própria moeda para ajudar a financiar equipamentos, acesso a crédito e capital estrangeiros a grupos antes colocados à margem, com atenção especial a iniciativas lideradas por mulheres. Criada em 2017, captou US$ 20 milhões em sua oferta inicial de criptoativos (ICO). A MDA, cripto nativa do projeto, chegou a algumas das maiores exchanges do mundo, como a Binance.
Há três anos, o Pride Bank oferece produtos para atender às necessidades da população LGBTQIA+. As ações vão desde o respeito ao nome social em cartões de crédito e contas digitais – independente da retificação de nome e gênero em documentos oficiais – até a intenção de criar, no futuro, um plano de saúde com médicos melhor preparados para lidar com a diversidade.
Se ainda existem enormes obstáculos para a inclusão no setor financeiro, não são apenas essas instituições voltadas ao impacto social que transformam o cenário. Vivemos uma acelerada digitalização e a pandemia catalisou o processo.
A aderência a meios digitais fica evidente no Global Digital Banking Index 2021, divulgado pelo banco digital N26. Entre 2018 e 2020, houve um salto de 73% no número de brasileiros com contas exclusivamente digitais. O Brasil só ficou atrás da Suécia no estudo, que ouviu 47 mil pessoas em 28 países.
Em outro levantamento, realizado pelo Grupo Consumoteca em janeiro de 2022, 30% dos entrevistados revelaram que não comparecem fisicamente a uma agência bancária há mais de um ano, enquanto 70% disseram que se esforçam ao máximo para evitá-las. Segundo 80% das pessoas ouvidas pela pesquisa, uma visita à agência ocorre apenas quando o problema não pode ser resolvido online.
Apesar de os números mostrarem uma forte tendência no sentido da digitalização dos serviços financeiros, alguns aspectos mais disruptivos dos mesmos devem demorar mais para ganhar tração. Não se espera uma guinada à descentralização das finanças da noite para o dia, por exemplo.
Qualquer alteração nesse setor demanda tempo de maturação, de construção de confiança e de aprendizado em relação às tecnologias disruptivas. Afinal, a evolução do dinheiro é um processo que ocorre há mais de mil anos, e continuará assim pelas décadas e séculos a seguir. A introdução de todas essas inovações, em última análise, facilitam e propiciam uma troca de valor mais dinâmica.
Apesar de o futuro ser uma cortina opaca através da qual não se pode enxergar com certeza, os sinais do presente deixam claro a trajetória dessa evolução: o dinheiro será mais acessível, fluido e múltiplo graças à revolução digital.