Por Marcus Couto
- Uma nova geração de metaversos habilita possibilidades de interação e oportunidades financeiras inéditas.
- Mundos digitais baseados na blockchain agora permitem a comprovação de propriedade digital por meio de contratos inteligentes.
- Combinação de criptomoedas, realidade virtual e games promete ser, segundo gigantes do Vale do Silício, o novo capítulo da evolução tecnológica humana.
A ideia de um universo paralelo digital e imersivo não é nova na cultura humana. Em Neuromancer, romance de 1984 do escritor americano-canadense William Gibson, considerado pai do gênero cyberpunk, a trama já explorava a ideia de um ciberespaço onde hackers podiam se conectar e, dissociados do corpo físico, viver aventuras numa “alucinação consensual coletiva” e paralela.
Essa visão de Gibson inspirou um dos mais famosos retratos dessa realidade virtual alternativa: a Matrix, cujo nome é diretamente emprestado de Neuromancer, e se tornou a grande antagonista da série de filmes dirigidos pelas irmãs Wachowski e lançados a partir de 1999, auge da euforia da internet.
Também foi por volta dessa época que surgiram alguns dos mais emblemáticos games de mundos abertos onde os jogadores podiam criar personagens altamente customizados para interagir com outros jogadores em tempo real. Eram os chamados MMORPGs, ou Massive Multiplayer Online RPGs. Um dos mais famosos é o Ultima Online, que até hoje, 25 anos após o seu lançamento em 1997, mantém uma base de cerca de 345 mil usuários ativos, apesar dos gráficos já ultrapassados pelas novas gerações de games.
Em Ultima Online, você cria um personagem como um “avatar”, uma cópia digital não muito diferente do que Mark Zuckerberg propõe nos apps de última geração de realidade virtual da Meta, novo nome de sua empresa que substituiu o de Facebook.
No jogo de fantasia medieval lançado no fim dos anos 1990, o jogador escolhe algumas características iniciais que podem ser desenvolvidas com treinamento (ganhar força socando bonecos, por exemplo, cortar árvores ou minerar o solo com uma picareta) ou em combate contra monstros que habitam o continente fictício de Britannia. O principal apelo do jogo era justamente a possibilidade de se criar um tipo de vida paralela nesse protótipo de metaverso.
Desde 1997, obviamente, os MMORPGs evoluíram em dinâmica, gráficos e possibilidades. Outros grandes sucessos surgiram desde então, como o World of Warcraft (2004), que reproduz muitos dos conceitos desbravados por Ultima Online, como a ideia de um mundo aberto para a livre exploração de avatares digitais capazes de ter suas habilidades desenvolvidas.
Outro exemplo, o Second Life propõe uma estranha vida alternativa digital, mais focado nas interações sociais, e embora o auge da fama tenha passado, a plataforma lançada em 2003 ainda conta com 1 milhão de usuários ativos.
Mas, apesar de todos esses casos anteriores bem-sucedidos de metaversos, uma nova onda de euforia sem precedentes tem atingido o mercado de tecnologia atualmente em torno das possibilidades de mundos digitais.
A palavra “metaverso” se tornou uma das principais buzz words deste início de década. E hoje é quase impossível navegar pelo noticiário ou ler relatórios de negócios sem esbarrar nesse conceito cujo nome é emprestado do romance de ficção científica Snow Crash (1992), do norte-americano Neal Stephenson, em que o protagonista vive uma realidade alternativa nessa duplicata digital, onde pode fazer compras e combater inimigos.
Algumas das maiores empresas do Vale do Silício apostam que este será o próximo capítulo do desenvolvimento tecnológico humano, comparado ao surgimento da Internet e das redes sociais.
O principal exemplo é o do Facebook, símbolo da chamada web 2.0. Em meio a um declínio em usuários da maior rede social do mundo, primeiro de sua história, e um cenário de nervosismo entre investidores, que levou o preço da ação a despencar 26% num único dia, a Meta busca focar seus recursos em criar aplicativos e ferramentas que, segundo Zuckerberg, ajudarão a estabelecer os alicerces dessa nova forma de nos relacionarmos com ambientes digitais.
O que foi então que mudou? Por que, agora, esses universos digitais, que já existiam de alguma forma há mais de duas décadas, se tornaram o futuro da tecnologia?
Um novo metaverso
Há o aspecto do amadurecimento de aparelhos de imersão em realidade virtual, que hoje são mais baratos e podem encontrar uma massa de público. O ecossistema, que inclui aplicativos que utilizam a capacidade desses equipamentos, está mais rico em opções de games, ferramentas de criação e comunicação.
Mas há um outro importante elemento; o surgimento de uma tecnologia que preencheu lacunas importantes na construção desse metaverso: a blockchain, e sua capacidade de solucionar o problema da comprovação de propriedade digital.
Em suma, o que a blockchain trouxe para esses universos digitais foi a possibilidade de estabelecer contratos verificáveis de propriedade para diferentes elementos no metaverso. Antes, um determinado item dentro desses jogos era mais propriedade do personagem do que do jogador em si. Pois se aquele personagem fosse apagado, os itens sumiriam também, a menos que fossem transferidos para outro personagem.
O que a blockchain permite é que um item seja registrado como um token não-fungível associado a uma carteira digital do usuário. Assim, cria-se um contrato que demonstra que aquela carteira é a proprietária de um determinado item, e as trocas podem ser feitas de forma muito mais dinâmica.
Além disso, uma vez na blockchain, é possível trocar esses itens por criptomoedas, que podem ser convertidas em outras formas de dinheiro como o dólar, o euro ou o real. Essas transações ficam todas registradas publicamente, de forma transparente e verificável. O que ocorre, como grande transformação desse antigo paradigma dos MMORPGs para o novo, é que as economias que ocorriam isoladas apenas dentro dos jogos agora passam a ter uma conexão direta com a economia do mundo real.
Atualmente, o mercado de NFTs é um dos principais motores financeiros do metaverso. Estima-se que, no ano passado, esse mercado tenha superado o valor total de US$ 40 bilhões, segundo levantamento da empresa especializada Chainalysis.
Com o intuito de abastecer um mercado de aquisição de itens que possam ser incorporados a avatares e armazenados como NFTs, já existem marcas de vestuário investindo em suas versões digitais, e estúdios de design nativos no metaverso. Mesmo para as marcas focadas no segmento de luxo, essa é uma grande oportunidade: vestir os avatares que serão apresentados socialmente de forma semelhante à que ocorre no mundo físico. Gucci, Balenciaga e Burberry estão entre as que já investem no segmento de itens digitais super exclusivos.
A startup RTFKT é outro exemplo, criada em 2020 por três amigos, e considerada líder nesse mercado graças a seus designs arrojados de sneakers digitais e NFTs colecionáveis que são vendidos por dezenas de milhares de dólares. No ano passado, a gigante Nike anunciou que havia comprado a RTFKT por um valor não revelado, prova do interesse de grandes corporações de vestuário nessa nova fronteira da cultura urbana.
“Essa aquisição é mais um passo que acelera a transformação digital da Nike e nos permite servir atletas e criadores na intersecção do esporte, criatividade, jogos e cultura”, afirmou publicamente o presidente e CEO da famosa fabricante de tênis, roupas e materiais esportivos, John Donahoe.
Pouco antes, a concorrente Adidas já havia anunciado sua própria aposta no metaverso, com uma parceria exclusiva com a startup Yuga Labs, criadora dos NFTs Bored Ape Yacht Club, para o lançamento de uma série de NFTs colecionáveis. O Twitter também criou sua própria coleção de NFTs temáticos com o logo do pássaro azul.
Essas empresas se movem rapidamente para garantir uma presença no metaverso, e uma conexão genuína com a cultura que começa a surgir. Mas há outras possibilidades de usos promocionais, também.
A operadora de telefonia TIM, por exemplo, lançou dentro do Cryptovoxels um stand virtual que funciona como uma réplica de sua loja conceito inaugurada no Rio de Janeiro. No metaverso, o ambiente tem dois andares, e a expectativa é de que uma arena de entretenimento traga concertos de música e outras apresentações para o mundo digital.
Já a Meta de Zuckerberg foca em explorar o uso desses ambientes como intermediários para a conexão entre pessoas. Por exemplo, com salas de reunião virtuais onde colegas de trabalho separados geograficamente possam se encontrar e interagir, com direito a captura e reprodução precisas de movimentos dos braços e das mãos. Ou então encontros de lazer entre familiares e amigos distantes.
O cenário pode ser desde uma casa digital paradisíaca à beira-mar até uma estação espacial fora da órbita da Terra. No mundo real, é claro que a situação de isolamento imposta pela pandemia do novo coronavírus tende a ser um elemento que torna essas soluções mais atraentes tanto para as empresas quanto para os usuários finais.
Mas, no momento, um dos setores mais aquecidos e cobiçados no uso da conexão de metaversos e blockchain é o dos games. São títulos como o Axie Infinity, um parente distante de Pokémon, onde os monstros colecionáveis podem ser usados em combate e trocados, sendo que cada um deles é um NFT registrado na blockchain Ethereum e, para começar a jogar, é preciso investir dinheiro. Os usuários podem ser recompensados fazendo trades, na medida em que os itens valorizam, mas assim como outros tokens, os mesmos estão sujeitos a forte volatilidade e desvalorização que, no limite, pode resultar em perdas.
Apesar disso, a promessa de lucro tem atraído milhões. Segundo a Sky Mavis, empresa do Vietnã criadora do game, 1.8 milhão de pessoas se conectavam diariamente em agosto de 2021, movimentando US$33 milhões em volume de vendas todos os dias. Muitos desses usuários se encontram nas Filipinas, país onde famílias inteiras recorrem ao trade de NFTs dentro do Axie Infinity como complemento (e às vezes principal fonte) de renda, segundo uma reportagem da rede de notícias CNBC.
É um consenso que hoje a maior parte desses games ainda é procurada por finalidades especulativas. Espera-se que os itens, como os monstros de Axie Infinity, valorizem, e por isso eles são adquiridos, semelhante ao que ocorre no mercado de arte digital em NFT. A possibilidade de lucrar com o trade fala mais alto que outras questões como jogabilidade, roteiro ou gráficos bem elaborados, padrão da indústria dos games, uma das mais valiosas do mundo. Vale lembrar que o último episódio da série Grand Theft Auto, o GTA V, foi o produto de entretenimento que arrecadou mais dinheiro na história, com receita estimada em US$ 6 bilhões, superior à de qualquer outro meio.
O próximo passo natural, então, tende a ser uma integração entre o desenvolvimento tradicional dos melhores jogos do mercado à tecnologia e inovações proporcionadas pela blockchain. Para isso, os estúdios precisarão lidar com a desconfiança da comunidade gamer, que em alguns casos já se mostrou contrária ao uso da tecnologia de NFTs por conta do alto gasto energético dos mesmos.
Recentemente, o estúdio responsável por Stalker 2 recuou em seus planos de utilizar tokens não-fungíveis para habilitar itens especiais do jogo após fortes protestos da comunidade de fãs. O mesmo ocorreu com a produtora do clássico Worms.
Mas o mercado sinaliza que essa tendência deve avançar, apesar do ruído dos mais conservadores, e um marco nesse sentido foi a aquisição de um dos principais estúdios de games do mundo, a Activision Blizzard, pela gigante dos softwares Microsoft, em um acordo de US$ 68.7 bilhões.
A empresa é a produtora de títulos icônicos como o first-person shooter Call of Duty, e os RPGs Diablo e World of Warcraft – o mesmo MMORPG super popular citado no início desta reportagem.
E a Microsoft admite que a aquisição histórica é parte de sua estratégia de entrada no metaverso: “Jogos são a categoria mais empolgante e dinâmica no entretenimento entre todas as plataformas atualmente e vão desempenhar um papel chave no desenvolvimento de plataformas de metaverso”, disse publicamente o CEO e chairman da Microsoft, Satya Nadella.
Há diversos caminhos possíveis para o amadurecimento dessa tecnologia. Exemplo: num contexto em que jogadores gastarão seu tempo dentro de mundos digitais, treinando personagens e enfrentando monstros, eles podem conquistar itens, forjá-los ou encontrá-los em baús escondidos dentro de masmorras subterrâneas, como sempre ocorreu nos games.
A diferença é que agora esses itens podem ser NFTs registrados na blockchain, comercializados e trocados por criptomoedas. Assim, a recompensa por obter um item raro passa a ter um impacto no mundo real, já que as criptos podem ser sacadas em outras formas de dinheiro, como o real.
Nesse cenário, o metaverso pode ser o lar de uma nova geração de profissionais digitais que trabalham dentro de jogos como ferreiros, artesãos e caçadores, em ambientes diversos, desde a fantasia medieval até cenários futuristas espaciais. Junte isso à tecnologia de realidade virtual e é possível ter uma ideia do cardápio de possibilidades para as empresas que queiram explorar essa fronteira.
Construindo alicerces
Apesar dos pesados investimentos feitos por algumas das maiores corporações do mundo, as bases do metaverso ainda estão em sua fase inicial de construção. E muitas questões ainda estão em aberto. Segurança e interoperabilidade são algumas delas.
Uma das principais inovações da blockchain é a possibilidade de estabelecer contratos de forma descentralizada, onde os mesmos são validados e verificados por uma rede de computadores dispersa. Ativistas se preocupam que a entrada de grandes empresas possa ameaçar essa arquitetura, com o desenvolvimento de protocolos fechados.
Segundo Mark Zuckerberg, os planos da Meta são de trabalhar com tecnologia de código aberto capaz de conectar diferentes plataformas: “O metaverso deve ser mais interoperacional e aberto do que qualquer plataforma de computação anterior”, escreveu o CEO ao anunciar que as patentes da empresa no campo da criptografia serão abertas para qualquer um usar e, nas palavras dele, “construir juntos esse futuro”.
Do lado da segurança, questões como assédio sexual dentro do metaverso já são discutidas e olhadas com preocupação. Recentemente, uma participante do programa de testes do mundo digital da Meta, a Horizon Worlds, relatou que seu avatar foi tocado sexualmente por uma pessoa estranha.
Ela escreveu no fórum oficial da empresa, segundo reportagem do The Verge: “Assédio sexual não é uma piada na internet normal, mas estar em um ambiente de realidade virtual adiciona uma outra camada que torna o evento mais intenso”. Espera-se que a inteligência artificial tenha um papel importante nesse processo de analisar dados e tornar esses ambientes mais protegidos desse tipo de violência.
Com todas essas questões, empresas e sociedade precisarão se juntar, em amplos fóruns de discussão, para criar um metaverso que seja livre e seguro, além de uma fonte justa de oportunidades financeiras para aqueles que as buscam. De certa forma, é uma chance única e histórica de construir do zero um ambiente de convívio global saudável a partir dos aprendizados que temos no mundo real. Será um grande e empolgante desafio.
Marcus Couto é consultor de conteúdo sênior e editor de EloInsights